Memórias e escola - 7º ano e 7ª série
Autoras: Anna Helena Altenfelder e Regina Andrade
Clara
O trabalho com memórias que o Escrevendo o Futuro propõe para as escolas
procura resgatar, por meio do encontro com as memórias de pessoas mais velhas,
a história da comunidade onde essas pessoas vivem.
O trabalho com lembranças oferece um meio eficiente de vincular o ambiente em
que as crianças vivem a um passado mais amplo e alcançar uma percepção viva do
passado, o qual passa a ser não somente conhecido, mas sentido pessoalmente.
Por isso, o trabalho com a memória da comunidade não pode se restringir à
recuperação de um passado morto e enterrado dentro de uma abordagem pitoresca
ou nostálgica, como se só o que já passou fosse bom e tivesse valor. Trata-se,
antes, de resgatar memórias vivas das pessoas mais velhas que, passadas
continuamente às gerações mais novas pelas palavras, pelos gestos, pelo
sentimento de comunidade de destino, ligam os moradores de um lugar.
Recuperar essa história, entre outras coisas, estimula professores e alunos a
se tornarem companheiros de trabalho, permite mostrar o valor de pessoas que
vêm da maioria desconhecida do povo, traz a história para dentro da comunidade
ao mesmo tempo em que extrai história de dentro dela, propicia o contato entre
gerações e pode gerar um sentimento de pertencer ao lugar onde se vive,
contribuindo para a formação de seres humanos mais completos e para a
constituição da cidadania.
Os processos da memória
Em nosso cotidiano, quando acionamos a memória, estamos sempre fazendo uma
relação entre o que está acontecendo agora e o que já aconteceu. Ou seja, a
memória do que já aconteceu está sempre presente no que está acontecendo. São
exemplos desse fato: lembrar-se do que não tem no armário da cozinha para ir
fazer compras no supermercado, lembrar-se do itinerário para ir a algum lugar,
lembrar-se do que já está feito em nosso trabalho para começar uma outra etapa,
etc. Há outras situações em que a memória surge por meio de perguntas que
fazemos ou que fazem para nós e que nos remetem ao passado. Em outros momentos,
a memória é despertada por um objeto, um cheiro, uma situação. Ao utilizar a
memória, sempre fazemos um jogo do "agora" com o "ontem",
do "aqui" com o "lá".
Escrever memórias
Rememorar pode ser algo corriqueiro, que fazemos sem sentir ou pensar. Há
momentos, porém, em que nossas memórias são provocadas por situações de
comunicação mais formais, como em uma entrevista, por exemplo, em um depoimento
que se dá sobre um fato que atingiu a comunidade. A linguagem que usamos nessas
situações, ou seja, os gêneros utilizados para rememorar, também são mais
formais. São exemplos: a escrita de um relatório de trabalho, de um currículo,
de um questionário a ser respondido numa consulta médica, a escrita de uma
biografia ou de um livro de memórias literárias.
O gênero memórias literárias
Memórias literárias são textos produzidos por escritores que dominam o ato de
escrever como arte e revivem uma época por meio de suas lembranças pessoais.
Esses escritores são, em geral, convidados por editoras para narrar suas
memórias de um modo literário, isto é, buscando despertar emoções estéticas no
leitor, procurando levá-lo a compartilhar suas lembranças de uma forma vívida.
Para isso, os autores usam a língua com liberdade e beleza, preferindo o
sentido figurativo das palavras, entre outras coisas. Nessa situação de
produção, própria do gênero memórias literárias, temos alguns componentes
fundamentais:
o um escritor capaz
de narrar suas memórias de um modo poético, literário;
o um editor disposto
a publicar essas memórias;
o leitores que buscam
um encontro emocionante com o passado narrado pelo autor, com uma determinada
época, com os fatos marcantes que nela ocorreram e com o modo como esses fatos
são interpretados artisticamente pelo escritor.
A situação de
comunicação na qual o gênero memórias literárias é produzido marca o texto. O
autor escreve com a consciência de que precisa encantar o leitor com seu relato
e que precisa atender a certas exigências do editor, como número de páginas,
tipo de linguagem (mais ou menos sofisticada, por exemplo, dependendo da
clientela que o editor procura atingir).
O escritor de memórias literárias
O escritor de memórias literárias tem a capacidade de recuperar suas
experiências de vida, verbalizando-as por meio de uma linguagem na qual é
autoridade. Mais do que lembrar o passado em que viveu, o memorialista narra
sua história, desdobrando-se em autor e narrador-personagem. São exemplos de
autores que escreveram suas memórias Gabriel Garcia Marques e Zélia Gattai, só
para citar dois mais recentes.
À medida que escreve seu texto, o escritor-autor-narrador organiza as vivências
rememoradas e as interpreta, usando uma linguagem específica - a literária. Nas
memórias literárias, o que é contado não é a realidade exata. A realidade dá
sustentação ao texto escrito, mas esse texto é constituído, também, por uma
certa dose de inventividade. Por um lado, as memórias literárias se aproximam
dos textos históricos quando narram a realidade vivida; por outro lado, aproximam-se
do romance porque resultam de um trabalho literário.
Como já se disse acima, ao escrever suas memórias, o autor se desdobra em
narrador e personagem, num jogo literário muito sutil, narrando os fatos de uma
época, olhando-a do ponto de vista de observador geral dos momentos que narra,
mas também olhando para si mesmo como personagem que viveu os acontecimentos
narrados, recriados pelas lembranças suas e dos outros. É possível reconhecer
quando o autor se coloca como narrador das memórias pelo uso da primeira
pessoa: "eu me lembro", "vivi numa época que...". Podemos
reconhecer o narrador-personagem nas memórias quando o autor descreve suas
sensações e emoções narrando fatos dos quais ele é o centro, mas que envolvem
outros personagens das memórias. Veja os exemplos, retirados de "Viver
para contar", de Gabriel Garcia Márquez: "Minha mãe disse assim: `Que
bom que você ficou amigo de seu pai.'" e "O zelador riu da minha
inocência". Quando é narrador, o autor fala das lembranças como um todo;
quando é narrador-personagem, fala de si, muitas vezes pela voz de outros
personagens que evoca.
Como, ao utilizar a memória, sempre se faz um jogo do "agora" com o
"ontem", do "aqui" com o "lá", o texto narrado
ficará marcado por esse vai e vem, com uma contínua comparação do passado com o
presente. Uma vez que o autor lembra, ele usa verbos que expressam o ato de
lembrar para mostrar esse vai-e-vem da memória: "rememorar",
"reviver", "rever". Esses verbos são usados, ora no
presente ("Eu me lembro..."), ora no pretérito ("Eutásia lavava
e passava minhas roupas..."). Usa pronomes possessivos ou oblíquos da
primeira pessoa: "Minha casa naquela época...", "Meu avô que era
carpinteiro...", "Lembro-me com saudade...", "Fizeram-me
jurar que...". O autor, por exemplo, retoma palavras utilizadas na época
evocada (vitrola, flertar), usa expressões que ajudam a localizar o leitor no
momento em que os fatos ocorreram ("Naquele tempo", "Em
1942"). Além disso, ele traz para o texto falas, vozes de outras personagens
("D. Mariquinha dizia que moça de família não devia se pintar"),
muitas vezes em forma de diálogos que movimentam e animam o texto.
O aluno autor de memórias literárias
Narrar memórias é uma habilidade que se aprende. Depois de recolher memórias
das pessoas mais velhas da comunidade, os alunos podem reconstruir/recriar
essas memórias, sem precisar fazer uma transcrição exata da realidade, pois o
ato de narrar é sempre uma criação. Quando se narra um acontecimento de forma
literária, o imaginário do narrador atua sobre as memórias recolhidas
transformando-as. Ao transformá-las procurando dar-lhes uma "vida" da
qual o leitor possa compartilhar, o narrador destaca alguns aspectos mais
envolventes e suprime outros.
A aventura de escrever memórias literárias é uma experiência muito rica. A
princípio parece não ser fácil, mas, com a ajuda do professor, os alunos
poderão aprender a ler e escrever esse gênero de texto tão importante para sua
formação.